DISFUNÇÕES BÁSICAS DO ESTADO BRASILEIRO
Quem deve ser o grande protagonista em um país: o Estado ou a Sociedade?
Talvez a reposta a este questionamento, dada pelo brasileiro médio, seja a de que o protagonismo deve ser do Estado e a sociedade deve atuar como simples receptáculo das ações protagônicas do Estado.
E esta resposta não seria de estranhar, porquanto o brasileiro foi acostumado a viver em um país cujo estado atingiu uma situação teratológica, de presença e poder quase ilimitados; consequentemente, deixou poucos espaços para a atuação da sociedade.
Quando um agente, seja uma coletividade ou um indivíduo, tem sua área de atuação restringida por delimitações, sejam elas de natureza política, sociais, legais ou econômicas, a tendência é o atrofiamento das suas capacidades. Quer dizer, quando as condições extrínsecas não permitem a manifestação dos efeitos resultantes das capacidades há uma restrição. Porém, atrofiamento não significa destruição, mas sim recolhimento, virtualização, ou redução das capacidades às potencialidades. Isto é, a condições externas ao indivíduo ou coletividade podem atuar de tal modo sobre as capacidades destes que a ampliem, permitindo a realização de efeitos, ou as restrinjam, fazendo com que recolham-se, como um lesma em seu caramujo. Nesta situação as capacidades continuam existindo, mas tão somente como potencialidades, não como efeitos, assim como a lesma não morre porque se encolha e se esconda em seu caramujo.
De modo geral, o Estado brasileiro tornou-se tão presente em todos os espaços da vida nacional que na prática sufoca o desenvolvimento dos brasileiros, como indivíduos e da sociedade brasileira. O estado brasileiro tornou-se um leviatã.
Se nos referimos às disfunções do estado, primeiramente devemos entender o que é o seu contrário, a “função”.
Segundo o filósofo Mario Ferreira dos Santos (Dicionário de Filosofia e Ciências Cuturais. p. 744) o termo função tem origem no latim. A etimologia do termo função esclarece que o termo vem de functio, que por sua vez vem de fungor: cumprir, desempenhar, executar, fazer, ou seja, significa a execução, o exercício, o emprego. Do ponto de vista técnico diz-se, por exemplo, que um aparelho funciona ou não funciona, se ele se presta ou não pararealizar as atividades para o qual foi preparado. Na biologia significa o movimento ou a atuação de um órgão conforme a sua especificidade; a função da raíz do vegetal é extrair água e nutrientes do solo, a da folhas é realizar a fotossíntese. Já na psicologia funções são as faculdades psíquicas e o seu processo, isto é, o seu funcionar.
Qualquer funçção depende de dois fatores: uma finalidade e uma estrutura. Se função é uma atividade, um desempenho, orientada para uma utilidade, para uma serventia, é lógico que deve haver uma finalidade estabelecida. Porém, a finalidade existe na dimensão da intenção e não da execução, sendo, portanto, anterior à função. Mas a função não é algo abstrato, não é uma névoa, um fluido etérico solto no universo. Ela tem de ter uma base, e esta é a estrutura. De alguma forma a finalidade está concretizada na estrutura, ou, sob outra perspectiva, a estrutura indica e concretiza a finalidade.
De qualquer modo, para que uma função se realize precisa de um órgão, e órgao quer dizer “instrumento”. Cada órgão tem uma estrutura, que é a relação entre as suas partes constituintes. A maneira como as partes se relacionam condiciona o tipo de atividade que será exercida. Partes iguais relacionadas de modo diferente possibilitam atividades diferentes. Coração e fígado, sem dúvida, são constituidos de carne, entretanto, suas funções são completamente diferentes.
Dai inferimos que a função será condicionada pela finalidade a que deve atender e pela estrutura do órgão que a executa. Podemos dizer, portanto, que função nada mais é do que a atividade desenvolvida ou à desenvolver por um determinado aparelho ou órgão para atingir uma finalidade determinada. Vejamos um exemplo muito simples. Qualquer pessoa pode entender qual é a função de uma pá ou de uma enxada, que é cavar. Embora a função “cavar” seja idêntica em cada uma delas, essas ferramentas a desempenham de modo diferente. Uma pá serve para cavar um buraco, só que a conformação, a estrutura da pá possibilitará que buraco seja mais profundo do que aquele cavado por uma enxada. Nenhuma pessoa de bom senso quererá usar uma pá ou uma enxada para cortar legumes ou costurar um pano. Logo, a própria estrutura da ferramente indica não somente a sua finalidade, mas também a sua atividade precípua. Inversamente, dada a finalidade a um ferreiro ele poderá construir uma ferramenta adequada a esta e com a estrutura apropriada para o seu desempenho.
Explicado o sentido de função, vejamos, então, no que consiste a disfunção.
O prefixo “dis”, que tem origem tanto na língua latina quanto na língua grega clássica. Em latim significa separação, movimento para diversos lados, negação, enquanto em grego tem o significado de dificuldade, de privação. Qualquer destas acepções que tomarmos nos indicará aproximadamente o sentido atual do termo disfunção. Podemos dizer que disfunção é a negação da função; neste caso, negar, de maneira alguma quer dizer destruir, mas apresenta sim o sentido de opor-se à função. Tomando da acepção em grego também podemos entender com facilidade que disfunção é a privação de uma função. Como privação é a ausência de algo que deveria estar naturalmente presente, então um aparelho que não consegue realizar as atividades que lhe são próprias, as realiza com dificuldade, ou ainda, gera produtos que distoam significativamente dos padrões estabelecidos ou naturalmente esperados, comete uma disfunção.
Numa acepção mais ampla podemos entender que disfunção é a negação da finalidade, ou seja, a atividade produziu efeitos que se distanciam da finalidade pretendida e o que foi realizado. Por conseguinte, disfuncional é toda atividade que não produz o que a estrutura do aparelho está apta a realizar, ou produz algo diferente do que foi pretendido.
Imaginemos um forno de micro-ondas. Todos sabemos que, além de aquecer e cozer alimentos, ele também serve para assar. Mas nenhuma pessoa psicologicamente saudável colocará, por exemplo, um gato vivo (ou morto) para ser assado em um micro-ondas. Neste caso hipotético, podemos identificar com clareza que há uma disfunção. É inegável que o infeliz felino poderá ser assado*, embora a finalidade do aparelho seja preparar alimentos (aquecer, cozer ou assar), as nossas regras morais tornam inaceitáveis que isso seja feito. Há evidentemente um desvio de finalidade, portanto, há uma disfunção.
Outro modo de entender as disfunções é aquele em que a atividade precípua do órgão é executada, porém com uma sobrecarga, com um excesso que ultrapassa a capacidade deste, de tal modo que a função deixa de ocorrer dentro de parâmetros normais provocando o desarranjo do aparelho, resultados deficientes, ou ambos.
Por conseguinte, a disfunção pode ocorrer em diferentes modalidades.
O Estado também é passível de sofrer disfuncionalidades. Entre as variadas disfunções, apresentamos a seguir as principais delas, conforme a entendemos: o patrimonialismo, o oficialismo e o autoritarismo.
Patrimonialismo
No patrimonialismo o governante ou o servidor público não faz distinção entre os bens do Estado e os bens privados. E por não distinguí-los não os separa, tratando-os e usufruindo dos bens estatais como se de sua propriedade privada fossem. (Consituição federal Art. 37§ 3º). tornaram-se comuns, nos últimos anos, a divulgação de casos em que servidores públicos usam, por exemplo, automóveis do estado para uso exclusivamente pessoais, como passeios em praias, o transporte de seus filhos para as atividades escolares, sendo o veículo conduzido muitas vezes, inclusive por motoristas pagos pelo erário público. Nas assembleias legislativas, federal ou estaduais, bem como em inúmeras câmaras de vereadores, deputados e vereadores apropriam-se de parte do salário dos seus assessores, que na maioria das vezes foram contratados justamente com esta intenção exclusiva; o nepotismo e o nepotismo cruzado, uma forma de praticar o nepotismo sem ser alçando pelo braço da lei, o excesso de rendimentos, as famosas gratificações, os jetons, as ajudas de custo desproporcionais, são todas, manifestações do patrimonialismo.
No último ano tivemos um ex-presidente condenado e já cumprindo pena porque julgou que todo o aparelho estatal lhe pertencia e tratou de tentar retirar o máximo de benefícios possíveis. Para o azar dele e sorte do povo brasileiro, o braço da lei o alcançou, apesar dele considerar-se inatingível. Os atos ilegais e corruptos praticados pelo ex-presidente podem ser inclusos no genero “patrimonialismo”.
Oficialismo
Oficialismo é a dependência do cidadão em relação ao estado, que deve dar-lhe autorização para a realização de qualquer projeto pessoal , empresarial e até político. A onipresença do estado na vida das pessoas pode atingir um limite de quase insuportabilidade; pode não somente desistimular a ações autônomas individuais ou coletivas, mas também impedí-las.
A excessiva burocracia é um dos modos mais utilizados pelos Estados para obstaculizar as ações privadas. Colocam-se tanta barreiras e pedágios, criam-se tantas regras que o cidadão, o agente privado gasta tempo enorme somente para cumprir a montanha de exigências, muitas delas sem qualquer sentido prático.
A estimativa de algumas associações voltadas ao acompanhamento deste tipo de problema é que em um ano apenas são editadas milhões de leis, normas, regras, portarias. É perfeitamente perceptível que ninguém, absolutamente ninguém consegue cumprir esta absurda quantidade de leis. Em algum momento o cidadão será intimado a pagar alguma multa ou cumprir alguma pena porque descumpriu uma regra qualquer.
O caso da exigência de carimbos em documentos para que uma determinada ação seja autorizada, algumas vezes chega a ser surreal. Em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul um Shopping Center demorou seis meses além do previsto para se instalar, deixando de gerar empregos e tributos, por causa de um simples carimbo. A diretoria do Shopping, buscando entender se havia descumprido alguma norma municipal de instalação, verificou que planta do prédio havia sido aprovada pelos engenheiros e arquitetos da prefeitura, no entanto, na planta teria de haver um espaço para a aposição do carimbo; ocorre que o carimbo utilizado pela seção encarregada de carimbar a planta era maior do que o espaço reservado na planta. O servidor encarregado, então, zelosamente, fez uma solicitação oficial para seus superiores para que providenciassem um carimbo nas dimensões certas para o espaço, ou que solicitassem, oficialmente à empresa para enviar uma planta cujo espaço do carimbo estivesse de acordo com as dimensões do referido artefato! Enquanto a tramitação do pedido circulava pelas gavetas dos “barnabés” o dinheiro do investimento corria o risco de aportar em outra cidade mais eficiente.
Estes são apenas alguns exemplos de como negócios são perdidos, investimentos ficam estagnados, e o cidadão não consegue cuidar da sua própria vida porque tem de atender e cumprir um emaranhado legal que dá poder a simples servidores públicos sobre a vida de grande quantidade de cidadãos. Todas estas são maneiras do Estado obrigar o cidadão a submeter-se ao oficialismo. Tudo seria mais fácil se os cidadãos não tivessem de solicitar autorização ao estado para fazer o que é necessário para sobreviver.
Autoritarismo
Autoritarismo é a imposição da vontade dos governantes e demais autoridades, de forma geral, tanto ultrapassando os limites da lei quanto o modo de executar ou exigir o cumprimento da lei pelos cidadãos. Um dos modos de manifestação de autoritarismo é de importância que é dada ao carisma pessoal, às relações pessoais e não às leis.
Em nível de Estado o autoritarismo manifesta-se na tradição intervencionista tanto na economia como na sociedade em geral.
Essas atitudes e comportamentos altamente presentes na cultura dos ocupantes do estado brasileiro são, de acordo com o conceito apresentado, graves disfunções e respondem por grande parte da tragédia do subdesenvolvimento do nosso país.
Já cohecemos estas disfunções, resta-nos saber, agora, o que podemos fazer para solucioná-las.
Felizmente a história nos mostra que existe solução para tão insidioso mal. E a terapêutica recomendada tem sua principal ação na aplicação do princípio de subsidiariedade. Este implica que a ação deve estar o mais proxima possível do cidadão. Isto é, o cidadão, o bairro, os distritos, os municípios, os estados-membros da federação devem ter autonomia para realizar aquilo que tem capacidade de fazer por si mesmos. À União Federal, e aos entes federativos superiores cabe o dever de intervir somente quando os inferiores não tiverem condições de realizar por si mesmos. Ainda assim a intervenção deve ser de caráter estritamente suplementar, ou seja, deve durar somente enquanto o ente objeto da intervenção estiver incapacitado de atuar autonomamente.
Esta é uma das razões pelas quais o federalismo pleno propõe a autonomia ampla para os estados e certa autonomia constitucionalmente determinada para os municípios, de modo que os estados-membros não possam retirá-la discricionáriamente. Certamente, a retenção de pelo menos 50% dos tributos nos municípios é uma das providências que podem aumentar significativamente a autonomia dos municipios. Mas somente isso não basta, pois se a receita é ampliada mas as fontes de custos permancem iguais a tendência é que estes continuem aumentando. Uma das maiores fontes de custos dos municípios e estados no Brasil é um dispositivo constitucional que obriga a todos eles reproduzirem, mimetizarem, as estruturas e processos da União Federal. Dessarte, municípios com mil habitantes são obrigados a manter órgãos como um prefeito no comando do poder executivo, com todos os seus órgãos de apoio, como a procuradoria do municipio ou do estado-membro, Câmaras de Vereadores e Assembléias Legislativas com seus gastos exagerados e inchaço de funcionários, e tantos outros que seria cansativo citá-los todos. É um dispositivo de uniformização, de submissão de todo o país á regras ditadas a partir do União.
Uma país assim organizado jamais pode ser considerado uma federação. Um país cujos entes estatais não dispõem de autonomia não é verdadeiramente uma federação.
Neste mesmo sentido, a imposição de regras complicadas, com metas dificeis de serem atingidas para a criação de um partido político produz concentração de poder nas mãos daqueles já existentes, gerando um déficit democrático na população. Há quem reclame da quantidade de partidos existentes; o real problema não é este, mas sim as exigências absurdas que impedem a população de criar partidos que verdadeiramente a represente. Não resta dúvida que existem sérios desvios nos partidos atuais, e todos sabemos quais são eles. No entanto, impedir a população de se organizar como quiser é uma forma de oficialismo e autoritarismo do estado em relação à população. O simples fato de não se permitir que qualquer cidadão concorra a cargos eletivos sem precisar estar vinculado a um partido é uma demonstração da existência das disfunções citadas. Por qual motivo não podem existir partidos exclusivemente estaduais? por qual motivo a gestão de uma cidade tem de ocorrer por meio da eleição de um prefeito que esteja vinculado a um partido? por qual motivo, sobretudo numa cidade pequena, não é permitido que chapas se inscrevam para concorrer, em vez dos partidos com suas dispendiosas campanhas eleitorais? por que todos os municípios, mesmo aqueles muito pequenos, são obrigados a eleger uma Câmara de Vereadores remunerados sendo muitas vezes cada vereador de um partido? Todas estes leis funcionam como uma camisa de força que impede a autonomia dos brasileiros de todas as partes do páis.
O federalismo pleno defende que cada municipio possa escolher o seu modo de organizar os serviços públicos, inclusive decidindo se prefere ter um prefeito eleito ou apenas contratado, se elege uma Câmara de Vereadores remunerados ou apenas um Conselho Municipal voluntário, com a incumbência de selecionar e contratar um prefeito, ou então continuar elegendo prefetos vinculados a partidos políticos. A mesma regra geral deve valer para os estados.
Respondendo, portanto, a questão colocada incialmente, estas ideias, embora estejam aqui somente esboçadas, baseiam-se na premissa de que o protagonista em um país deve ser a sociedade e não o Estado. Porém, não existe protagonismo social se o cidadão, o indivíduo não possui autonomia. Somente com a autonomia do cidadão, dos estados-membros e dos municípios é que as disfuncionalidades aqui descritas começarão a ser corrigidas.
Para o federalismo pleno é necessário acabar com as disfunções aqui elencadas para que as potencialidades de protagonismo dos brasileiros emerja e se realizem. Tais disfunções não são obstáculos intransponíveis, como aliás os recentes fatos políticos estão demonstrando, mas se forem reduzidas ou totamente eliminadas o protagonismo dos cidadãos deste país renascerá com mais força, e transformará rapidamente toda a nossa realidade.
O federalismo pleno defende ideias como estas em muitos outros aspectos da realidade nacional. Uma federação baseada no princípio da dignidade humana, da subsidiáriedade e do equilíbrio sistêmico pode faer com que as disfunções históricas do Estado brasileiro sejam corrigidas e levem o Brasil ao encontro do seu futuro de liberdade, justiça e prosperidade.
Ivomar Schuler da Costa – Vice-presidente do Instituto Federalista
*De maneira alguma praticamos ou concordamos com maus-tratos ou crueldade com animais de qualquer espécie. O exemplo do gato, bem como a sua imagem, são apenas maneiras absurdas de demonstrar o conceito de disfuncionalidade.
Na realidade, o Brasil está longe de se estabelecer como uma federação, por todos os motivos expostos pelo Autor e talvez ainda mais alguns.
Parabéns pelo texto.
Agradecido.